Café com Português
Os poemas de amargo nasceram entre 2016 e 2023, nutrindo-se do arquivo pessoal de Alê Magalhães, cheio de impressões deste tempo.
O ano de 2022, quando a construção da obra veio, clamava uma literatura que o retratasse, nossos corpos e mentes viviam uma imersão doída, ansiosa e cheia de esperança com a troca de poder na presidência. A autora não escapou de criar uma obra com o repúdio em massa de uma sociedade refém, e registrou, com emoção e amor, o começo do restabelecimento da democracia em nosso país. Uma narrativa construída no mesmo passo das circunstâncias, num tempo real com ânsia de se cicatrizar como passado sombrio — e um constante alerta para o futuro.
Aqui apresentamos com exclusividade para a Galiza alguns poemas do livro Amargo de Alê Magalhães. Sem mais delongas.
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copacabana
peguei o táxi para copacabana
fui ver o mar
as moças e seus biquínis
os rapazes e seu futevôlei
as crianças e suas brincadeiras
as senhoras e seus largos chapéus
drummond sem óculos
não enxergava nem se chamava raimundo
banho de sol
banho de mar
as velhas raposas
(ah, as velhas raposas)
essas carregavam faixas
pedindo a volta da ditadura
ai de ti, copacabana
❧
prenda
talvez alguém me prenda
por causa deste decreto-poema
talvez alguma mulher
ainda a prenda da casa
na poesia por decreto
eu decreto
não passarei mais roupa
nem passarei mais pano
quantos livros poderiam ser lidos
enquanto engomavam camisas?
quantos poemas poderiam ser escritos
enquanto passavam vestidos?
quanta literatura foi gasta
em roupas bem passadas?
talvez me prendam
os olhos julgadores
das regras impostas
na amurada noturna
quando ainda não sabíamos que
não
não era amor
era trabalho não remunerado
❧
chá de boldo
com djamila ribeiro
minha vó diz:
“chá de boldo é bom”
não acredito nela
como pode ser bom
algo tão amargo?
como pode ser bom
sentir um arrepio no corpo?
como pode ser bom
não saber o que me espera?
minha vó diz:
“chá de boldo é bom”
não acredito nela
mesmo assim
macero as folhas
esquento a água
tomo meu chá
amargo
e
necessário
❧
Alê Magalhães é escritora, professora da rede pública federal, pós-doutoranda em Literatura pela UERJ e mediadora de leitura. Os seus dois livros de poemas eu me vingo escrevendo (2021) e amargo (2023) foram publicados pelo Selo Auroras. Tem textos publicados nas antologias de poesia e prosa do Prêmio Off Flip 2021 e na antologia Prosas de Oficina, com organização de Débora Gil Pantaleão e publicada pela Editora Escaleras. Defende o SUS, a educação pública e a democracia.
Podem saber mais sobre a autora aqui. As fotografias que acompanham o texto são da própria escritora.
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